É muito conhecida a expressão “voltar ao primeiro amor”. Ela está em
Apocalipse 2.4, quando Deus puxa a orelha dos cristãos da cidade de
Éfeso por terem “abandonado o primeiro amor”. É interessante que, por
causa dessa passagem, é popularmente difundida a ideia de que o
“primeiro amor” é o estado ideal e a meta de todo cristão. Que sentir e fazer por toda a vida o que se sentia e se fazia no início da caminhada cristã é o que Jesus espera de todos nós. Particularmente, eu discordo disso. Por estranho que possa parecer, não penso que o primeiro amor seja o estado ideal para todos
os cristãos. Para muitos sim, mas não para todos. Acredito mais que, em
nossa espiritualidade, devemos procurar viver o “segundo amor”.
Esquisito? Permita-me explicar.
Em geral, quando nos referimos a esse “primeiro amor”, o associamos a
uma certa empolgação; a um sentimento de busca profunda de Deus; a uma
vontade constante de evangelizar, de pensar e agir o tempo todo por
Jesus. Sabe aquele sentimento de empolgação que você sente no início de
um namoro? Seria mais ou menos a isso que associamos esse estado
espiritual mencionado em Apocalipse. Só que, quando analisamos com calma
o texto, vemos que não é bem isso o que ele diz.
Veja:
“Conheço as suas obras, o seu trabalho árduo e a sua perseverança. Sei
que você não pode tolerar homens maus, que pôs à prova os que dizem ser
apóstolos mas não são, e descobriu que eles eram impostores. Você tem perseverado e suportado sofrimentos por causa do meu nome, e não tem desfalecido. Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio. Se não se arrepender, virei a você e tirarei o seu candelabro do lugar dele” (Ap 2.2-5).
Repare que Deus dá ordem para se lembrar “de onde caiu”. No contexto
bíblico do processo de queda e restauração do homem, “cair” é um verbo
usado como sinônimo de “viver de modo pecaminoso” (cf. 1Co 10.12-13). Se
dizemos “fulano caiu”, automaticamente compreendemos que ele está
vivendo em pecado e sem arrependimento. Isso é reforçado pelo que é dito
a seguir aos cristãos de Éfeso: que, se os membros daquela igreja não
se arrependessem, sofreriam consequências. E qual tipo de cristão
precisa de arrependimento? Quem pecou.
Se a ideia popularmente difundida for correta, viver uma
espiritualidade menos impulsiva, menos empolgada, menos assemelhada a
uma paixão de início de namoro seria um pecado que necessita de
arrependimento. Só que não é. Ninguém tem seu “candelabro” removido
porque tornou-se menos empolgado. Isso ocorre se foram cometidos
pecados. Portanto, conclui-se que o problema dos efésios é que estavam
em um estado de transgressão e necessitavam de arrependimento, para
retornar a realizar “as primeiras obras”, ou seja, as práticas de
santidade que faziam parte de sua rotina antes dessa queda. Era uma
igreja dedicada, sofredora e apologética – como o texto bíblico descreve
com clareza -, mas que estava envolvida em algum pecado.
Entendo, então, que o problema da igreja de Éfeso não era estar
vivendo uma vida espiritual menos eufórica – visto que essa
interpretação é incompatível com o que o Senhor fala nos versículos
anteriores -, mas estava incorrendo em pecados de que necessitava se
arrepender. Não consigo ver o “primeiro amor”, portanto, como um estado
de euforia pós-conversão, como muitos apregoam, mas sim o estado de
santidade que devemos viver ao longo de toda nossa vida.
Tendo
dito tudo isso, permita-me explicar, então, por que acredito que o
“segundo amor” é mais desejável que o primeiro. E aqui o conceito que
uso é o popular. Muitos creem, pela interpretação que entendo ser
equivocada, de Ap 2.4, que aquela euforia do período imediatamente
pós-conversão é o estado ideal de vida espiritual do crente. Não vejo
assim. O início da caminhada cristã é uma fase de imaturidade e
impetuosidade, ignorância bíblica e limitação teológica. Nessa fase, o
cristão responde à graça de Deus, recebe o chamado do Espírito Santo,
mas ainda engatinha na fé, bebe leite espiritual, o que é um estado
imperfeito, como Hebreus 5.12-14; 1 Coríntios 3.1,2 e 1 Timóteo 3.6
deixam claro. Não é o padrão que Deus deseja para nós. Ele quer cristãos
maduros, fortalecidos na Palavra, experientes. Somos convidados a
buscar a maturidade espiritual e não a viver eternamente naquele estado
inicial de impulsividade, grande emotividade e enormes limitações. Deus
quer que fiquemos firmes na rocha, com solidez – não com empolgação.
Façamos uma analogia, por exemplo, com um casamento. Pessoas
recém-casadas vivem numa enorme euforia, numa empolgação só, como se a
vida a dois fosse uma eterna lua de mel: fazem caminhos de pétalas da
porta à cama, preparam as comidas preferidas do cônjuge, deixam
bilhetinhos em lugares estratégicos… vivem alegres o conto de fadas.
Mas, passados os primeiros anos de casamento, se não foi desenvolvida
uma maturidade naquele relacionamento ele vai se desgastar. Virão as
necessidades práticas do dia a dia, as contas, a perda do pudor de
soltar gases na frente do outro, a mulher descobrirá que o marido ronca,
o marido descobrirá que a mulher tem mau hálito de manhã… a magia
começa a ser substituída pelo mundo real. E, então, quem dependia do
conto de fadas para ser feliz no matrimônio vai se decepcionar, esfriar,
viver infeliz, se divorciar. Pois, se aquele “primeiro amor” é o
estágio que traz felicidade, lamento informar aos sonhadores: ele não
vai durar para sempre.
Portanto,
é o “segundo amor”, o que se solidifica passada a fase dos cuticutis
iniciais de um casamento, que vai sustentá-lo. A maturidade. O amor
sólido e perene. A capacidade de continuar dando a vida pelo outro pelo
resto de seus dias. As gracinhas dos primeiros anos de matrimônio
passam. O que permanece é o amor verdadeiro e maduro. Na vida espiritual
é igual. O cristão que acha que deve buscar aquele cuticuti inicial com
Deus como o modelo de vida espiritual vai viver uma espiritualidade
limitada. Vai querer sempre buscar emoções. Ficará insatisfeito quando
não sentir nada no culto. Vai se tornar viciado na empolgação que viveu
nos primeiros tempos de convertido. Mas Deus procura verdadeiros
adoradores e não adoradores empolgados.
Assim, biblicamente, “voltar ao primeiro amor” é o que precisa fazer o
cristão que passou a viver na prática do pecado. Ele tem de abandonar
suas transgressões, lembrar-se de onde caiu, arrepender-se e voltar a
realizar as obras que praticava no início – as boas obras, fruto da fé
salvífica. Já o cristão que vive em intimidade com o Senhor e que,
apesar de seus pecados, não se conforma com eles e se esforça em viver
em santidade, esse deve viver o “segundo amor”. Maduro. Sólido.
Consistente. Consequente. Duradouro.
Ao contrário do que diz a música, eu não quero voltar a esse
“primeiro amor” que a cultura popular estabeleceu. Quero viver no
“segundo amor”. Nas vezes em que eu descarrilei no meio do caminho, não
só quis, mas precisei voltar ao primeiro amor. Mas, enquanto estiver nos
trilhos, não. Pois desejo que minha vida com Deus seja uma linha
ascendente, cada vez com mais intimidade, conhecimento, crescimento e
maturidade. Uma evolução. E nunca um retrocesso.
Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Maurício